Cultura
Bernardino Leça: poeta repentista e cantador emérito
“Bernardino Leça foi o último dos Leça que possuiu a casa onde a tradição diz que se abrigara D. Fr. Bartolomeu dos Mártires. Era inculto, analfabeto, de feições grosseiras, segundo ele mesmo se classifica, parece que de bons costumes, simplório, mas com extraordinária veia poética e repentista. Naquele tempo ia “cantar ao desafio” (costume em voga) pelos concelhos vizinhos, lá pela região da Maia, etc., e com prejuízo da sua casa de lavoura que abandonava e consumição das irmãs e esposa, a qual, por fim, vendo-o incorrigível e o desequilíbrio do casal, separou-se dele e retirou para Viatodos, sua terra natal.”
Poeta repentista e cantador emérito, verdadeiro andarilho, dotado de doentes especiais para versejar e cantar, e com um estilo de vida muito próprio, Bernardino Lopes, mais conhecido por Bernardino Leça, tinha a veia dos poetas e cantores populares, a resposta mordaz e irónica, sempre na ponta da língua.
Cantador ao desafio muito conhecido no nosso concelho e em concelhos vizinhos, designada nas Terras da Maia, era um elemento preponderante em muitas romarias, mas também nas espadeladas, desfolhadas, etc. A sua participação em muitas festas fora do nosso concelho, fazia com que abandonasse a sua casa e os trabalhos agrícolas, o que nem toda gente compreendia, sobretudo a sua mulher que não aceitava muito bem esta sua maneira de ser. Por isso, chegou a deixá-lo, indo viver para sua casa, na freguesia de Viatodos.
Bernardino Lopes nasceu em Macieira de Rates, em 30 de abril de 1792 e faleceu “da vida presente com todos os sacramentos da Confissão, Eucaristia e Extremaunção”, nesta mesma freguesia, no lugar do Rio, em 19 de agosto de 1858, com 66 anos de idade. Segundo o registo de óbito feito pelo pároco, Pe. Severino de Oliveira Lima, foi sepultado, no dia seguinte, dentro da sacristia, pois as campas da igreja paroquial estavam cheias. Segundo Rios Novais morreu abandonado, na miséria, este poeta e cantador popular que fez a alegria de tanta e tanta gente.
Era filho de Manuel Lopes e de Ana Maria, do lugar do Rio. Era neto paterno de Manuel Lopes Pereira casado com Custódia Domingues e materno de José António casado com Maria Antónia, todos desta freguesia. Foi batizado em 6 de maio do referido mês, na Igreja desta freguesia pelo pároco Pe. Manuel Gomes de Sousa. Foram padrinhos José António casado com Maria Antónia, do lugar do Penedo e Maria da Silva casada com José Lopes Ferreira.
Segundo Rios Novais, Bernardino Lopes residia na casa dos “Leças”, no lugar do Rio, onde se diz ter pernoitado D. Frei Bartolomeu dos Mártires, que foi Arcebispo de Braga entre 1559 e 1582. Vindo da freguesia vizinha de S. Pedro de Rates, de visita ao túmulo de S. Pedro, um dos seus antecessores e primeiro Bispo de Braga, uma tempestade de obrigou-o a acolher-se na referida casa. Sentado numa raza de medir os cereais, aqueceu-se à lareira e alimentou-se com ovos cozidos e broa.
Assinalar este facto, havia uma placa em mármore que foi retirada da casa, encontrando-se atualmente na posse do Monsenhor Manuel Ferreira de Araújo.
A fama deste homem era de tal ordem que, segundo Rios Novais, o dr. Rodrigo Veloso (04.02.1839-24.06.1913), barcelense por adoção, notável advogado e político do Partido Progressista, fundador e diretor do jornal “Aurora do Cávado”, apreciava muito os seus versos do Leça, passando-os a escrito.
Acerca de Bernardino Leça contam-se algumas histórias muito curiosas, tal como a que é descrita pelo autor que vimos citando. Certo dia, uma das suas irmãs saiu de manhã cedo para os trabalhos do campo e deixou-lhe ao lume o pote com o caldo para o almoço, como era usual naquele tempo, no caso dele vir antes do meio dia. Ao lado deste, deixou também uma panela com a vianda para um bacorinho. Ao chegar a casa, o Leça “deitou a mão à ração maior” e comeu tudo, nada deixando para o pequeno porco.
Felizmente que conhecemos alguma da poesia de Bernardino Leça, pois Rios Novais recolheu-a deu-a a conhecer no seu pequeno trabalho publicado em 1944 e intitulado “Notas Ligeiras a Propósito da Visita Pastoral a Macieira”.
Certo dia, o Leça foi a um arraial à freguesia de Fornelo, concelho de Vila do Conde. No regresso a Macieira, e já altas horas da madrugada, o barqueiro que fazia a passagem no rio Ave, exigiu que o cantador Amaro da Lage, lhe cantasse uma boa cantiga. Cantou a primeira e a segunda, mas parece que não foi agrado do barqueiro, que não saía da margem. Então, Amaro da Lage pediu ao Leça para cantar e a resposta foi imediata:
“Adeus Amaro da Lage
Não sejas tão marralheiro
Puxa pelos codões à bolsa
Para pagar ao barqueiro.”
Parece que o barqueiro gostou da cantiga e, imediatamente, se pôs a remar, soltando o Leça outra cantiga:
“Quando Deus criou a terra
Também criou este rio;
E também criou estes tolos
Para andarem por aqui ao frio.”
Outra cantiga conhecida de Bernardino Leça é a que foi dita quando uma das suas irmãs se casou:
“Donde estou bem vejo
Coisas que me fazem rir
Uma chora porque vai
Outra chora por não ir.”
Numa determinada altura, quando se preparava para cantar ao desafio, o dono da casa pediu-lhe para que a primeira cantiga fosse dedicada ao próprio Leça. E a resposta foi imediata:
“Chegou aqui agora
Bernardino Leça
Que é grosso nas feições
Delicado na conversa.”
Certo dia, freguesia de Viatodos, no fim de uma espadelada, o Leça tinha que cantar para cada uma das mulheres que estavam em círculo, na eira, entre as quais a sua própria mulher, de quem estava já separado, e saiu-se com esta:
“Era uma vez homem
Casado com uma mulher
Desarranjaram-se no contrato
Cada um faz o que quer.”
Uma determinada altura, um certo cantador que o desafiava, apelidou-o de “fraco homem”, por estar separado da mulher. A resposta do Leça não se fez esperar:
“Com respeito a mulheres
Calemo-nos ambos os dois:
A tua fugiu antes
A minha fugiu depois.”
Manuel Ferreira de Araújo, no seu livro “S. Adrião de Macieira”, publicado em 2008, acrescenta mais algumas cantigas. Uma delas foi cantada na boda do casamento de João Rodrigues Afonso, de Macieira, com Maria Rosa Costa, de Beiriz, Póvoa de Varzim, seus bisavós:
I
Adeus João de Penedo
Já que Deus assim o quis
Foste buscar a melhor pomba
Que se criou em Beiriz.
II
Adeus João de Penedo
Trazes a fêmea e dinheiro
Olha se a cama cai
É erro do carpinteiro.
III
Ó minha pombinha branca
Ó ramo de Macieira
Quando deres o voo
Ficarás logo à beira.
IV
Ó minha pombinha branca
Salta pró meio da eira
Tu hoje vais dar um voo
De Beiriz a Macieira.
O autor atrás citado divulga ainda mais duas cantigas muito engraçadas, contadas pelo seu avô, Manuel António Araújo.
O Leça foi à romaria de Nossa Senhora das Necessidades, em Barqueiros, acompanhado de alguns amigos de Macieira, tendo encontrado uma cantadeira, daqueles de “pelo na benta”, temida por todos os cantadores.
A cantadeira soltou-lhe a seguinte quadra:
“Quem me dera ter papel
E tinha para escrever
Olha o diabo do velho
O que veio aqui fazer:”
O Leça, no sue estilo habitual, respondeu-lhe imediatamente:
“Do cu fazes tinteiro
Do nariz pena aparada
Da língua fazes papel
Já não te falta mais nada.”
Era assim o Bernardino Leça, poeta popular e notável cantador, que merece ser divulgado e conhecido, para além da justa homenagem da freguesia com a consagração do seu nome na toponímia de Macieira de Rates.